quarta-feira, 4 de junho de 2014

Final da Heineken Cup - algumas notas

Houve quem se considerasse defraudado com a final, em virtude da falta de espetacularidade do jogo. No entanto, o jogo foi incrível, porque o nível de intensidade foi absolutamente estrondoso, e o aproveitamento clínico das - poucas - oportunidades pelo Toulon absolutamente magistral. 
Algumas ideias

Fases estáticas - se no alinhamento as equipas equivaleram-se, na formação ordenada os Saracens tiveram claro ascendente, tendo inclusivamente "arrancado" 4 penalidades (se a contabilidade manual deste escriba não o enganou...), duas das quais convertidas em pontos - 6 no total. Questão distinta é saber quais os benefícios para os Saracens desta superioridade... pouco mais que os 6 pontos, muito por culpa do ponto seguinte.

Jogo no chão (breakdown) - Bradley Barritt disse-o e os números confirmam: o Toulon dizimou os Saracens no jogo no chão, com 9 recuperações de bola (5 à conta de Steffon Armitage). O Toulon não placou mais, mas placou muito mais eficaz e agressivamente. Foram brilhantes na forma como anularam a (aparentemente) única ameaça no transporte de bola inglesa, Billy Vunipola, e preocuparam-se em assegurar que o portador da bola ia ao chão rapidamente, conseguindo ainda colocar o segundo homem (assist tackler) mais cedo no processo de disputa da posse, que resultou na recuperação da bola, ou atraso significativo na sua disponibilização pelos Saracens. O Toulon foi clínico e brilhante neste aspecto.

A ideia central - Laporte v Gustard

Em Abril de 2012, o Clermont infligiu pesados 22-3 aos Saracens, que jogavam em casa os quartos de final da Heineken Cup. Mark McCall, director de rugby dos ingleses, recordou esse jogo como o dia em que os homens derrotaram as crianças, explicando que a partir dessa data os Saracens passaram a ter como objectivo nunca mais serem dominados fisicamente num encontro. Parte da reformulação do jogo dos Saracens passou pela defesa.

Paul Gustard, antigo terceira linha dos Leicester Tigers, é o treinador de defesa (e também avançados) nos Saracens e um homem a quem muitos atribuem uma enorme fatia do sucesso recente dos ingleses, na qualidade de inventor daquilo a que chamam o "Wolf Pack". Defendendo com um bloco formado por uma linha continua, com jogadores separados por não mais que 3 metros, Gustard pede que todos olhem para a bola - algo diametralmente oposto ao que se vai pedindo por esse mundo fora: olhos no ataque. Desta forma, Gustard impõe uma velocidade de linha vertiginosa, retira espaço e tempo aos manobradores, e consegue criar situações de 2x1, que potenciam recuperações de bola e até intercepções (basta recordar os ensaios de Ashton e Farrell, na 17.ª jornada, em Wembley).

Parece que o "Wolf Pack" encontrou a sua némesis. Laporte foi brilhante, e os seus jogadores foram rigorosos. 
Como é que o Toulon venceu?
  • retiraram importância ao "Wolf Pack", com especial menção para Jacques Burger (7 placagens, ao invés das 27 registadas contra o Clermont). Escolheram 8 carregadores de bola poderosos no perímetro curto (note-se, a este propósito, a eleição Rossouw e Botha na segunda linha, dispensando a proeza no alinhamento de Ali Williams e o atleticismo e cobertura de Kuta), que dominaram a colisão e ganharam, sucessivamente, metros em "picks" e penetrações próximas do "ruck". Apenas 100 passes (contra 143 dos Saracens), e a maioria deles do 9 para um penetrador do "pack" (50 passes de  Tillous-Borde, apenas 9 de Wilkinson) explicam bem o que o Toulon foi fazer a Cardiff;
  • prescindiram da posse de bola, uma estratégia apenas possível porque a placagem altamente eficaz, agressiva e disciplinada, evitou pontos ingleses, apostando claramente na sua recuperação e imediata ocupação territorial ao pé;
  • ocuparam magistralmente o território, jogando sempre nas posições correctas, i.e. longe dos 22 metros defensivos, mas também longe dos pontos onde Farrell se sentiria confortável para converter penalidades;
  • foram clínicos na forma como aproveitaram os desequilíbrios defensivos gerados pela forma de defender do "Wolf Pack", mais evidentemente no primeiro ensaio, mas também no segundo (ver análise detalhada em post separado);
  • os Saracens, como qualquer outra pessoa, esperavam que Wilkinson controlasse o tempo de jogo, bem como a forma de ataque: posse de bola ou ocupação territorial ao pé. Aliás, foi esse o guião da meia-final do Toulon, contra o Munster. Só que Laporte trocou as voltas a McCall e foi Tillous-Borde quem controlou todo o jogo francês, com pontapés longos a ganhar metros vitais (que não eram facilmente recuperados, porque a defesa do Toulon foi exímia), mas também com pontapés para a caixa lateral, sempre bem pressionados. Tillous-Borde foi, com Steffon Armitage e Juan Smith, o homem do jogo. Os números, como sempre, ilustram a verdade: contra o Munster, Wilko passou 19 bolas e chutou 6 (excluindo pontapés para alinhamento e penalidades); contra os Saracens, passou 9 e chutou apenas 3. Tillous-Borde, que contra o Munster havia feito apenas 1 pontapé em jogo corrido, registou 13 chutos no jogo com os Saracens, evidenciando a mudança táctica operada e sublinhando a maestria de Laporte. Os Saracens foram de tal forma surpreendidos, que chegou a ser caricato verificar a falta de pressão aos primeiros pontapés de Tillous-Borde a partir de "maul". 
Porque é que os Saracens perderam?
  • antes de tudo o mais, porque foram surpreendidos tacticamente;
  • em termos atacantes, não conseguiram entender que, sem capacidade para vencer a colisão nos canais mais próximos, e consequentemente sem capacidade para gerar bola rápida que permitisse penetrações dos Vunipolas e sobretudo dos centros, Ashton e Britz nos canais centrais e exteriores, havia que jogar o jogo nos sítios certos (jogo ao pé) mas que com o 3 de trás do Toulon organizado e profundo, havia sobretudo que explorar o espaço intermédio central, atrás da linha defensiva, permitindo dessa forma libertar a sua terceira linha para o papel que melhor desempenha, de pressão defensiva asfixiante e recuperação de bola. Esta alternativa acabaria por abrandar a velocidade da linha defensiva francesa e obrigaria o seu 3 de trás a subir no terreno; o que por sua vez permitira a Farrell mais espaço para progredir em penetrações centrais e, sobretudo, mais espaço para decidir a ocupação territorial ao pé;
  • em termos defensivos, os Saracens foram incapazes de perceber que a velocidade de subida da linha defensiva é inversamente proporcional à velocidade com que a bola atacante é reciclada; ou seja, não podemos subir demasiadamente rápido se a organização da linha defensiva é comprometida pela velocidade a que a bola  é disponibilizada ao ataque, sob pena de defendermos, pura e simplesmente, mal. E a bola do Toulon foi, na maioria das vezes e fruto da superioridade no jogo no chão, demasiado rápida para o "Wolf Pack".

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