quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ser Deus a Treinar

João de Deus parece-me, desde há uns anos, um treinador extremamente interessante. Sobretudo pelo trabalho extraterrestre que fez com o Atlético Clube de Portugal, na época 2011/12, terminando em 9.º lugar, com apenas 27 golos marcados, mas também com uns magros 36 sofridos. Uma equipa modesta (o dinheiro, antes como hoje, não abunda em Alcântara) mas extremamente bem organizada – dava a sensação que os jogadores estavam "espremidos" até seu limite, no melhor sentido da palavra; i.e. eram a melhor versão deles mesmos, nunca haviam jogado melhor.

Recentemente, em entrevista ao excelente Maisfutebol, João de Deus mostrou que é, além de tudo o mais, um interessantíssimo homem, o que contribuirá decisivamente para a sua qualidade enquanto míster do pontapé na bola, assim chamado por Valdano. A dada altura, afirma: Um dos grandes problemas é que eu pensava muito pouco o jogo. Diziam-me corre para ali, ou chuta para ali e eu fazia o que me mandavam. Correndo o perigo da generalização, parece-me que João de Deus encontra companhia em todos aqueles que aprenderam a jogar por meio da repetição exaustiva de gestos e respeito incondicional pelas ordens que chegavam da linha lateral.

E esta é, na verdade, uma das maiores e mais tristes evidências acerca do treino desportivo em qualquer modalidade. Recordo inúmeros treinadores, alguns marcantes, que procuraram melhorar a execução táctica e técnica – infelizmente com preponderância desajustada para a primeira – de todos quantos integravam aquelas desafiantes equipas, recorrendo à exemplificação e repetição da fórmula para jogar. Esquecidas ficavam as ferramentas, na forma de domínio dos gestos técnicos básicos do jogo, e a essencial consciência que garante a sua adequada utilização, na forma de compreensão do jogo ao ponto de permitir que o jogador, sozinho e rapidamente, consiga decidir qual o melhor gesto técnico ou decisão táctica a empregar.

É complicado convencer um treinador de miúdos de 14 anos a ensiná-los a passar bem para os dois lados, a saber cair com a bola, a chutá-la, a tocar nela 100 vezes por treino, a perceber que não é igual jogar contra defesas alinhados ou profundos, a identificar vantagens e o espaço, a saber não obliterá-lo, antes entregando a bola para companheiros melhor colocados, a seguir incondicionalmente o portador do melão e a disponibilizar-se para que ela se mantenha “viva”. É complicado, porque preferem todos, incluindo os miúdos, ganhar. Ensinar exige tempo, ao passo que a vitória no fim-de-semana seguinte pede apenas que alinhemos os miúdos e os metamos a repetir ad nauseam a jogada que nos dará a vitória. Com sorte, podemos repeti-la 3 vezes, para 3 ensaios.

É também por isto que, chegados aos séniores, os nossos treinadores recebiam uma mão cheia de malta que não percebia patavina do que andava a jogar. E assim continuámos, até que tentámos ensinar aos miúdos a arte de jogar Rugby. Ninguém esquece o dia em que é confrontado com a sua ignorância.

Vem tudo isto a propósito de treinadores e do que fazem: treinar, ou seja, tornar o atleta apto a desempenhar determinada atividade desportiva. Um atleta será tão mais apto quanto melhor seja capaz de dominar os gestos técnicos e compreender os fundamentos do jogo.

É comum ouvir os treinadores das equipas mais aflitas lamentarem-se da falta de qualidade do seu plantel. E por isso, entre jogos de 10 contra 10, uns berros a apelar à alma e umas “sovas” físicas, limitam-se a aceitar o que os seus jogadores podem dar, sem acreditar que, aos 25 anos, um jogador pode aprender a pensar melhor, a passar melhor, a chutar melhor, a compreender a colisão sob uma outra luz... São os treinadores que, anatematicamente, demitiram-se de treinar, limitando-se a selecionar nomes e olear a máquina.

É claro que ao mais alto nível o imperativo da vitória comanda, e por vezes há que aceitar a limitação evidente do conjunto, compondo uma fórmula de sucesso com as qualidades existentes. Ainda recentemente Dean Ryan, um dos mais celebrados e analíticos cérebros do rugby moderno, recordou-nos a cartilha, de onde lê igualmente o bem sucedido Heineke Meyer.

E no entanto, é o próprio Heineke Meyer, com fama de conservador, que nos relembra que os jogadores, mesmo os internacionais, podem aprender coisas novas. O Duane Vermeulen, o Bismark Du Plessis e o François Louw aprenderam novas abordagem ao “ruck”, logrando atrasar a saída de bola adversária, acelerando a disponibilização das suas próprias bolas. Willie Le Roux, o ponta ou defesa que “enterrou” com os seus lapsos defensivos e jogo ao pé ineficiente o Championship dos Sul-Africanos no Ellis Park, frente aos All Blacks, parece ter ouvido o treinador de jogo ao pé, Louis Koen, para agora ter convencido Meyer das suas capacidades como defesa de nível internacional. Bob Dwyer, o lendário treinador Australiano campeão do mundo em 1991, nota como Quade Cooper, ainda há meses dado como acabado, surge em Novembro com uma nova noção táctica, variando a profundidade com que recebe a bola consoante as questões que lhe são colocadas pela defesa. Ele, com dezenas e dezenas de internacionalizações, terá aprendido algo novo.

Pelos vistos, mesmo aqueles cujo pescoço depende de vitórias, acabam por perceber que o rigor do plano táctico fica vazio perante a incapacidade para executar, para ler o jogo e jogar de acordo com que temos à frente dos nossos olhos.