domingo, 3 de maio de 2015

Armitage (e Abendanon): tempos de opinião

Eddie Butler, cronista do "The Guardian", juntou a sua voz ao coro de opiniões que reclamam a presença de Steffon Armitage, e também de Nick Abendanon - embora os dois casos sejam distintos, na minha opinião - nos eleitos de Stuart Lancaster para o Campeonato do Mundo.

Restam poucas dúvidas que Armitage é um dos melhores jogadores do mundo, e um "7" singular. Com a acção sobre a bola de McCaw ou Pockock, o jogo de continuidade de Hooper, o poder de ganhar metros de Louw, com um baixo centro de gravidade que o torna um placador devastador, Armitage é um terceira linha fenomenal. Como pode Lancaster deixar este craque de fora das suas escolhas, particularmente quando não tem à sua disposição ninguém com características semelhantes? Armitage é a arma que falta no arsenal inglês.

Na semana em que a Austrália, evidenciando uma enorme dose de bom-senso e pragmatismo, anunciou que Michael Cheika poderá convocar jogadores a jogar no estrangeiro - viabilizando as chamadas de Matt Giteau ou Drew Mitchell, por exemplo - regressaram em força as questões em torno da política de convocatórias inglesa e a ambígua cláusula das "circunstâncias excepcionais". A regra diz que são seleccionáveis os que joguem em Inglaterra; mas o seleccionador pode convocar outros, nomeadamente os que jogam em França, em "circunstâncias excepcionais".

Clive Woodward tem sido um dos mais fervorosos adeptos da cooptação de Armitage, recorrendo a um aforismo que considera insofismável: a selecção tem de contar com os melhores, e Armitage é o melhor na posição; acresce que, em ano de Mundial, estão reunidas as tais "circunstâncias excepcionais" que justificam a derrogação da regra. Woodward apresenta uma argumentação convincente. Contudo, parece-me que ignora - voluntariamente - as diversas implicações que a decisão de Lancaster acarreta e que extravasam o mero aspecto desportivo. 

A questão do tecto salarial na Premiership está na ordem do dia, e agora que os Franceses "perderam a cabeça" em matéria de remunerações, uma loucura possibilitada pelas chorudas receitas advenientes do novo contrato de direitos de transmissão TV, a eventual chamada de Armitage ou de Abendanon daria um forte impulso ao encantamento e sedução exercido pelo "joi de vivre" sobre os internacionais ingleses. Esta perspectiva de depauperamento do campeonato Inglês não terá grande interesse estratégico para os patrões de Lancaster...

Por outro lado, Woodward urde a sua teia em torno da noção de resultado, lembrando que os treinadores são exclusivamente julgados em função das vitórias. Terá razão, mas uma andorinha não faz a primavera (leia-se um jogador não faz uma equipa) e alguns dos actuais internacionais - Tom Youngs e Wood, nomeadamente - não se coibiram de manifestar a sua discordância face à eventual convocatória de jogadores a jogar no além fronteiras, sugerindo inclusivamente que a chegada de um "estrangeiro" poderia ter consequências na moral da equipa. Sobre esta intervenção com tonalidades de ultimatum, Drew Michell apresentou um argumentário que deveria ser objecto de reflexão em Twickenham: se a cultura é efectivamente forte, a integração de um ou dois jogadores não a colocaria em causa, correcto?

Parece-me que a questão acaba por ser simples. Armitage só não será convocado por uma de duas pessoas: Lancaster treinador ou Lancaster dirigente. Parece-me que pensar-se que neste momento é o treinador que decide é ignorar o fundamento da questão, e chega a ser insultuoso para um homem da estatura de Lancaster.

Quando chegou à selecção, Stuart Lancaster deparou-se com um grupo partido, sem líderes nem resultados desportivos, que destacava-se apenas pelos escândalos acumulados: lançamento de anões, alegadas infidelidades envolvendo o capitão e uma princesa do Reino, mergulhos durante uma viagem de ferry em Auckland e umas "orelhas de coelho" oferecidas ao primeiro ministro David Cameron, por ocasião duma fotografia oficial. Evidências inequívocas da "cambada de bêbados", egoístas, irresponsáveis e imaturos, que por acaso equipavam com a rosa ao peito. Em muito pouco tempo, Lancaster revolucionou a cultura da equipa e varreu a "bandalheira". Os jogadores passaram a respeitáveis e respeitados, rigorosos e educados, porta-estandartes da forma correcta de estar neste desporto, sem escândalos e com compromisso, esforço e talento. Durante este processo, é natural que Lancaster tenha feito juras de fidelidade que não pode agora quebrar; terá sido essa a forma de convencer alguns  rufias - Hartley, Mike Brown, Tuilagui, etc. - a personificar o seu ethos, a nova ordem da rosa. Porém, as juras têm um limite. Nenhum treinador no mundo promete a um grupo que não escolherá em função do rendimento, da qualidade humana, física, táctica e técnica, do nível de integração no grupo, da mesma forma que nenhum treinador diz a um jogador que ele fará parte da equipa, independentemente da sua contribuição. E Armitage, a priori, não teve sequer oportunidade para demonstrar incapacidade para integrar a equipa, aceitando os seus valores e regras. Lancaster, o treinador, jamais deixará Armitage de fora dos eleitos para o Mundial.

Mas na sua condição de comandante do rugby inglês, Lancaster é mais que um mero treinador; é também um homem cujas decisões têm um impacto na forma de governação da modalidade em Inglaterra. Pensemos no seguinte silogismo:
a) - Lancaster convoca Armitage para o Campeonato do Mundo;
b) - em 2015/16, cerca de 15 a 20 jogadores internacionais ingleses mudam-se para França, onde encontram contratos chorudos;
c) - a Aviva Premiership perde qualidade, número de espectadores e as receitas publicitárias associadas à venda dos respectivos direitos TV descem a pique;
d) - os clubes da Aviva pressionam a RFU, federação inglesa, para abolir o tecto salarial, conseguindo assim atrair os melhores talentos do mundo, provenientes da Nova Zelândia, Austrália, África do Sul ou Argentina;
e) - com a chegada em massa de talento estrangeiro, o número de jogadores qualificados para representar a selecção inglesa presentes nas listas de jogadores da Aviva Premiership sofre uma redução significativa;
f) - pressionados pelos orçamentos cada vez mais elevados (fruto dos aumentos salariais), os clubes forçam a RFU a aceitar a abolição do sistema de promoção/despromoção com o Championship (segunda divisão), garantido assim que os investimentos realizados são feitos num contexto económico estável;
g) - Rob Andrew, director de rugby professional da RFU, queixa-se que a qualidade de jogo da selecção inglesa está a diminuir, em resultado do cada vez menor número de jovens jogadores ingleses presentes na Aviva Premiership.

O exercício anterior, que é neste momento pura ficção, será a realidade provável caso Lancaster convoque Armitage ou Abendanon. Por isso, as críticas dirigidas a Lancaster, que do ponto de vista desportivo são no mínimo atendíveis, não têm em consideração aquele que julgo ser o seu real fundamento. Em última análise, a decisão nem sequer é de Lancaster, que não obstante fica colado a uma injustiça tremenda relativa a um dos melhores jogadores da actualidade.

P.S. - Armitage saiu de Inglaterra em 2010 e não era, na altura, o jogador que hoje é. Abendanon saiu este ano e mostra as mesmíssimas qualidades e defeitos que o elevaram à condição de internacional e num dos mais entusiasmantes jogadores ingleses, mas também um dos menos consistentes defensivamente. Não existe no grupo às ordens de Lancaster um jogador com as características de Armitage, ao passo que Mike Brown e sobretudo Anthony Watson são dois defesas com reconhecida capacidade atacante, no contra-ataque e defensiva. Por isso considero que as duas situações são profundamente distintas.


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