quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Os Polivalentes

Um querido amigo, magnífico treinador e excelente líder, o João Pedro Varela, recomendou-me o livro “Wooden on Leadership: How to Create a Winning Organization”, colocando-me dessa forma na rota dos processos de liderança propugnados por treinadores de basquetebol, primeiro norte-americanos e mais recentemente nacionais também – tive o imenso prazer de conhecer, no final de 2014, o Professor Jorge Araújo, cuja magnífica obra deixará um legado de excelência.

Nesta caminhada, foi-me dada a ler uma entrevista a Mike Krzyzewski, o “Coach K”, treinador da equipa universitária de basquetebol de Duke há 31 anos e dono de um currículo invejável, que inclui trabalho titulado com o “Dream Team” de 1992, que incluía Jordan, Larry Bird ou Magic Jonhson, e ainda a equipa Olímpica norte-americana de 2012, que apresentava Kobe Bryant e LeBron James. A entrevista, cuja leitura é altamente recomendada, deixa clara uma ideia que Wooden introduzira e que os All Blacks transformaram em mantra inderrogável: melhores pessoas resultam em melhores jogadores. E por isso, a entrevista do “Coach K” deixa transpirar alguns dos princípios da sua liderança:
  • responsabilização dos jogadores: inclusão dos jogadores nos processos de definição dos princípios que orientam o ambiente da equipa, por oposição à imposição de regras que resultam da visão do treinador; 
  • preocupação com o carácter do jogador: vida familiar, hábitos alimentares, de saúde e alimentação, relações de amizade, rendimento escolar ou profissional, etc. A vertente técnica e táctica é apenas uma dimensão da avaliação, e não necessariamente a mais relevante; 
  • fomento de um ambiente de felicidade competitiva, em que coexistem a responsabilidade e o prazer de jogar e pertencer, por oposição à limitação imposta pela pressão que resulta, natural e inelutavelmente, da paradigma competitivo assente na vitória e derrota, no céu e no inferno.
Dei por mim a pensar que um dos maiores desafios na gestão de uma equipa é o da justiça, esse conceito forçosamente relativo, que assume tonalidades e matizes distintas consoante os olhos em que se projecta. E se os princípios – “standards”, critérios – ajudam o treinador a resolver virtualmente todas as situações de conflito, sobretudo se decididos e supervisionados pelos líderes do grupo, existe um dilema em que o ambiente, por mais saudável que seja, não exonera o treinador da sua função: a eleição dos que jogam. Um drama temido ou desejado, consoante represente a penúria ou sobejidão de opções, mas que o deixa só perante os sujeitos do seu arbítrio. E neste âmbito, os polivalentes surgem como o magno drama do talento.

Em 2011, quando treinava o CDUL, foi-nos oferecido um jogador com um currículo que não devia enganar: capitão de equipa de uma província neozelandesa, várias épocas de ITM, idade que indiciava experiência q.b. e ainda o fogo de superação, uma presença física assinalável. No entanto, decidimos contra a sua vinda. Estávamos à procura de um segunda linha, um saltador, e o jogador em questão podia jogar na primeira e na segunda. Não consigo explicá-lo de outra forma; quando me apresentaram um jogador como sendo capaz de desempenhar, adequadamente, duas funções distintas (sobretudo nas fases estáticas, em que as exigências específicas da posição são significativamente dispares), não acreditei que o pudesse fazer, ainda que tivesse um registo de competência num campeonato com muito maior qualidade que o nosso. Olhando para trás, vejo que muito provavelmente cometemos um tremendo erro, ao sermos vítimas do preconceito associado à polivalência. O Ruben Amorim, no futebol, queixa-se de algo semelhante...

Talvez esta nossa desconfiança subliminar, intuitiva, inconsciente, radique na visão que temos sobre os multifacetados, não apenas no desporto. Quantas pessoas conhecemos com talento para escrever, cantar, fazer contas, organizar eventos e jogar um desporto qualquer? E quantas vezes não acusamos esta mesma pessoa de dispersão, de tentar fazer um pouco de tudo sem nunca chegar a fazer nada verdadeiramente bem? Não pretendo entrar numa discussão do que está certo ou errado, porque há muito que vou compreendendo que a métrica do sucesso não obedece, inevitavelmente, à escala dos euros. Mas do ponto de vista da execução técnica e táctica, sobretudo em ambientes de pressão, talvez esta desconfiança tenha alguma razão de ser. As pessoas que fazem de tudo um pouco são, tendencialmente, demasiado felizes para se preocuparem excessivamente com o resultado numérico, final, mensurável. E o desporto não comporta a noção de vitória moral. Warren Gatland, um convertido a estas coisas da inclusão responsabilizante, assinala esta ambiguidade intrínseca do desporto de alta competição de forma desassombrada, numa entrevista recente. No fim de contas, o treinador escolherá, entre o romântico e o pragmático, o segundo em nome da ditadura do resultado. "I like winning. I don't believe in the bull of playing well and losing, I'd rather play like crap and win a game any day of the week." Gatland dixit. (Nunca dependi do treino para viver, por isso parte da minha alma de treinador reside ainda no campo romântico. Mas falta-me a legitimidade de quem tudo venceu).

Lembro-me, por exemplo, do Carl Murray, que pode jogar de 10 a 15 na linha atrasada de qualquer equipa nacional (e jogou pela Selecção Nacional a 12 e 13, pelo CDUL recentemente a 13 e 15), mas que comigo nunca foi outra coisa que não um 15. Lembro-me, também, de um Nuno Penha e Costa regressado, em 2011, de alguns meses de Bay of Plenty e com um “andamento” extraterrestre. Ele, que saíra de Portugal como um 15, foi durante larga parte de 2011/12 um 10 que revolucionou a estrutura atacante do CDUL, com a sua capacidade de decisão notável. Mas só o foi porque um não menos notável Pedro Cabral começou a época lesionado e não havia alternativa viável. A necessidade derrotou a minha incompetência desconfiada. O Nuno acabou por regressar ao três de trás, quando o Pedro recuperou a forma que o transformou num “abertura” sem paralelo na capacidade de resolver, a nível do CDUL e também da Selecção.

A resposta é, como em tudo, simples: o critério tem de ser, sempre, o da qualidade. Se um jogador tem capacidade para desempenhar várias funções e papéis num esquema táctico, deve ser recompensado pelo facto, e nunca castigado. Se algum dia voltar a treinar, tentarei melhorar também neste aspecto. Afinal, como diz o “Coach K”, o treino vicia porque ao tentarmos melhorar os nossos jogadores, estamos inexoravelmente comprometidos com o processo de nos melhorarmos a nós mesmos.


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