Um querido amigo, magnífico treinador e excelente líder, o João Pedro
Varela, recomendou-me o livro “Wooden on Leadership: How to Create a Winning Organization”, colocando-me dessa forma
na rota dos processos de liderança propugnados por treinadores de basquetebol,
primeiro norte-americanos e mais recentemente nacionais também – tive o imenso
prazer de conhecer, no final de 2014, o Professor Jorge Araújo, cuja magnífica
obra deixará um legado de excelência.
Nesta caminhada, foi-me dada a ler uma entrevista a Mike Krzyzewski, o “Coach K”, treinador da equipa universitária de
basquetebol de Duke há 31 anos e dono de um currículo invejável, que inclui
trabalho titulado com o “Dream Team” de 1992, que incluía Jordan, Larry Bird ou
Magic Jonhson, e ainda a equipa Olímpica norte-americana de 2012, que
apresentava Kobe Bryant e LeBron James. A entrevista, cuja leitura é altamente
recomendada, deixa clara uma ideia que Wooden introduzira e que os All Blacks
transformaram em mantra inderrogável: melhores pessoas resultam em melhores
jogadores. E por isso, a entrevista do “Coach K” deixa transpirar alguns dos
princípios da sua liderança:
- responsabilização dos jogadores: inclusão dos jogadores nos processos de definição dos princípios que orientam o ambiente da equipa, por oposição à imposição de regras que resultam da visão do treinador;
- preocupação com o carácter do jogador: vida familiar, hábitos alimentares, de saúde e alimentação, relações de amizade, rendimento escolar ou profissional, etc. A vertente técnica e táctica é apenas uma dimensão da avaliação, e não necessariamente a mais relevante;
- fomento de um ambiente de felicidade competitiva, em que coexistem a responsabilidade e o prazer de jogar e pertencer, por oposição à limitação imposta pela pressão que resulta, natural e inelutavelmente, da paradigma competitivo assente na vitória e derrota, no céu e no inferno.
Dei por mim a pensar que um dos maiores desafios na
gestão de uma equipa é o da justiça, esse conceito forçosamente relativo, que
assume tonalidades e matizes distintas consoante os olhos em que se projecta. E
se os princípios – “standards”, critérios – ajudam o treinador a resolver
virtualmente todas as situações de conflito, sobretudo se decididos e
supervisionados pelos líderes do grupo, existe um dilema em que o ambiente, por
mais saudável que seja, não exonera o treinador da sua função: a eleição dos
que jogam. Um drama temido ou desejado, consoante represente a penúria ou
sobejidão de opções, mas que o deixa só perante os sujeitos do seu arbítrio. E
neste âmbito, os polivalentes surgem como o magno drama do talento.
Em 2011, quando treinava o CDUL, foi-nos
oferecido um jogador com um currículo que não devia enganar: capitão de equipa
de uma província neozelandesa, várias épocas de ITM, idade que indiciava
experiência q.b. e ainda o fogo de superação, uma presença física assinalável.
No entanto, decidimos contra a sua vinda. Estávamos à procura de um segunda
linha, um saltador, e o jogador em questão podia jogar na primeira e na
segunda. Não consigo explicá-lo de outra forma; quando me apresentaram um
jogador como sendo capaz de desempenhar, adequadamente, duas funções distintas
(sobretudo nas fases estáticas, em que as exigências específicas da posição são
significativamente dispares), não acreditei que o pudesse fazer, ainda que
tivesse um registo de competência num campeonato com muito maior qualidade que
o nosso. Olhando para trás, vejo que muito provavelmente cometemos um tremendo
erro, ao sermos vítimas do preconceito associado à polivalência. O Ruben
Amorim, no futebol, queixa-se de algo semelhante...
Talvez esta nossa desconfiança subliminar,
intuitiva, inconsciente, radique na visão que temos sobre os multifacetados,
não apenas no desporto. Quantas pessoas conhecemos com talento para escrever,
cantar, fazer contas, organizar eventos e jogar um desporto qualquer? E quantas
vezes não acusamos esta mesma pessoa de dispersão, de tentar fazer um pouco de
tudo sem nunca chegar a fazer nada verdadeiramente bem? Não pretendo entrar
numa discussão do que está certo ou errado, porque há muito que vou
compreendendo que a métrica do sucesso não obedece, inevitavelmente, à escala
dos euros. Mas do ponto de vista da execução técnica e táctica, sobretudo em
ambientes de pressão, talvez esta desconfiança tenha alguma razão de ser. As
pessoas que fazem de tudo um pouco são, tendencialmente, demasiado felizes para
se preocuparem excessivamente com o resultado numérico, final, mensurável. E o
desporto não comporta a noção de vitória moral. Warren Gatland, um convertido a
estas coisas da inclusão responsabilizante, assinala esta ambiguidade
intrínseca do desporto de alta competição de forma desassombrada, numa
entrevista recente. No fim de contas, o treinador escolherá, entre o romântico
e o pragmático, o segundo em nome da ditadura do resultado. "I like winning. I don't believe in the bull
of playing well and losing, I'd rather play like crap and win a game any day of
the week." Gatland dixit. (Nunca
dependi do treino para viver, por isso parte da minha alma de treinador reside
ainda no campo romântico. Mas falta-me a legitimidade de quem tudo venceu).
Lembro-me, por exemplo, do Carl Murray, que pode jogar de 10 a 15 na linha
atrasada de qualquer equipa nacional (e jogou pela Selecção Nacional a 12 e 13,
pelo CDUL recentemente a 13 e 15), mas que comigo nunca foi outra coisa que não
um 15. Lembro-me, também, de um Nuno Penha e Costa regressado, em 2011, de
alguns meses de Bay of Plenty e com um “andamento” extraterrestre. Ele, que
saíra de Portugal como um 15, foi durante larga parte de 2011/12 um 10 que
revolucionou a estrutura atacante do CDUL, com a sua capacidade de decisão
notável. Mas só o foi porque um não menos notável Pedro Cabral começou a época
lesionado e não havia alternativa viável. A necessidade derrotou a minha
incompetência desconfiada. O Nuno acabou por regressar ao três de trás, quando
o Pedro recuperou a forma que o transformou num “abertura” sem paralelo na
capacidade de resolver, a nível do CDUL e também da Selecção.
A resposta é, como em tudo, simples: o critério tem de ser, sempre, o da
qualidade. Se um jogador tem capacidade para desempenhar várias funções e
papéis num esquema táctico, deve ser recompensado pelo facto, e nunca
castigado. Se algum dia voltar a treinar, tentarei melhorar também neste
aspecto. Afinal, como diz o “Coach K”, o treino vicia porque ao tentarmos
melhorar os nossos jogadores, estamos inexoravelmente comprometidos com o
processo de nos melhorarmos a nós mesmos.