sábado, 19 de julho de 2014

Formar para vencer



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É uma inevitabilidade: andamos no desporto de competição para vencer. Nesse aspecto, é um pouco como a política (já regresso a este ponto). E tudo o que é feito numa organização desportiva tem como fito último a vitória, mesmo no caso das organizações que valorizam o processo em detrimento do resultado – fazem-no, na sua maioria e paradoxalmente, porque acreditam que ao valorizar o processo, ficam mais próximos de alcançar o resultado. Por processo entenda-se não só os procedimentos, mas também o conjunto de normas que regem toda a conduta dos membros integrantes, i.e. a cultura da equipa.

O imperativo da vitória

A verdade, porém, é que o desporto competitivo não admite a sobrevivência de processos que redundem, sucessiva e maioritariamente, em derrotas. É claro que a noção de vitória varia consoante a organização – para uns serão títulos, para outros classificações meritórias (pelo menos até ao momento em que estas sejam em número tal que os títulos passem a ser exigidos), para outros ainda resultados financeiros associados à exploração da actividade desportiva. De todo o modo, é de vitória que falamos em competição, independentemente do significado circunstancial.

Contratar ou formar?

A questão da formação de jogadores está em voga (no rugby, seguramente, mas também no futebol), e está intimamente relacionada com este paradigma existencial do desporto competitivo. Para vencer precisamos de jogadores; que por sua vez terão de ser angariados/contratados, ou formados. Note-se que a formação não exclui – deve, aliás, atender e entender – esse maravilhoso e aberrante fenómeno da geração espontânea, que permite que miúdos que jogaram toda a vida descalços, com cocos ou amontoados de papel colado no lugar de bola, em pelados invadidos por crateras e calhaus, sejam hoje o Samuel Eto’o ou o Rupeni Cacaunibuca.

Se a contratação apresenta a vantagem de não exigir estrutura significativa, na medida em que meia dúzia de olheiros “varrem” o globo com recurso às actuais e inúmeras ferramentas tecnológicas, nem outro investimento que não seja o correspondente à eventual aquisição de direitos desportivos, encerra um risco significativo, já que a observação não nos oferece garantias quanto ao tipo de jogador que estamos a recrutar para a nossa organização, e muito menos o tipo de pessoa. Basta recuperar, como demonstração, as memórias de incontáveis expectativas frustradas com contratações de jogadores, que se revelaram um flop.

Inversamente, o processo formativo permite que acompanhemos o desenvolvimento das vertentes motoras, técnicas e tácticas do jogador, fomentando, crítica e essencialmente, a identificação com a cultura do clube. Contudo, a formação exige um investimento apreciável, sobretudo em pessoas – e não tanto em infraestruturas, contrariamente à crença popular – que tem retorno variável e inevitavelmente a longo prazo.

Risco e recompensa

Sobre o rácio risco/recompensa falarão com maior propriedade os economistas, que reduzem praticamente tudo a números, e o desporto também. Recordo o furor causado nas massas pelo Moneyball, que encontra paralelo na obsessão analítica em voga nos anos ’90, com a introdução dos softwares de análise de jogo. O desporto não se contém em números ou estatísticas, mas seria estúpido ignorar a boa informação que a matemática analítica nos oferece.

Quando se contrapõe formação a contratação, referimo-nos essencialmente a risco e recompensa. Compreende-se a dificuldade de afirmação das valências da formação, como ferramenta primordial de recrutamento e composição de um plantel. Primeiro, porque os treinadores têm ciclos nas equipas – como os políticos, nos cargos que ocupam – e sentem a necessidade, largamente injustificada, de apostar em gente que conhecem, “batida” e que apresente resultados imediatos; injustificada porque não existe no mundo calculadora capaz de enumerar as contratações falhadas, algumas pagas a peso de ouro. Para estes, a aposta nos miúdos fica para depois, para alguém que “feche a porta”; as semelhanças com a política são recorrentes.

No entanto, estou convencido que o facto que concorre primordialmente para a desvalorização do processo formativo é a circunstância das organizações valorizarem sobretudo – e porventura unicamente – a contribuição técnica e táctica do jogador, sem consideração pelo carácter, temperamento e adequação à cultura da organização. É claro que com “coxos” ninguém ganha, mas sou dos que acredita que não basta saber chutar, passar e placar. Um bom jogador tem de ser, como recordou com perspicácia o Francisco Pereira Branco no P3, acima de tudo, ainda melhor pessoa. Enquanto não for outorgada dimensão crítica ao ethos, a formação será sempre um expediente para “inglês ver”, ou para cumprimento de coloridas regras ad hoc, algures entre os jogadores formados localmente da UE e as quotas raciais na África do Sul (não se leia neste apontamento qualquer crítica a estas regras, que podem até ser necessárias; lamenta-se apenas que o estado de coisas exija que alguém a pense).

Apenas a vitória

Não proponho que se defenda nada mais que a vitória. Acredito que o caminho mais sustentável para lá chegar é através da formação de culturas fortes, assentes na integridade, qualidade motora, técnica e táctica, que por sua vez exige uma aposta forte na qualificação de quadros formadores, que resultarão em melhores jogadores e melhores pessoas. O recrutamento terá sempre um papel complementar, importante.

A Alemanha campeã do mundo anda desde o início do século a pensar nestas coisas, com o sucesso que se conhece (uma liga profissional com estádios cheios, lucrativa, níveis de participação em máximos históricos, o quarto campeonato do mundo). 

Talvez tenhamos investido demasiado tempo e – não nos iludamos – dinheiro em apenas parte da equação. O problema maior é que não se vislumbra, no rugby como no futebol, quem se preocupe em caracterizar o contexto, em identificar virtudes e faltas, em apresentar e discutir soluções. Estamos sempre a tempo.