João de
Deus parece-me, desde há uns anos, um treinador extremamente interessante.
Sobretudo pelo trabalho extraterrestre que fez com o Atlético Clube de
Portugal, na época 2011/12, terminando em 9.º lugar, com apenas 27 golos
marcados, mas também com uns magros 36 sofridos. Uma equipa modesta (o
dinheiro, antes como hoje, não abunda em Alcântara) mas extremamente bem
organizada – dava a sensação que os jogadores estavam "espremidos"
até seu limite, no melhor sentido da palavra; i.e. eram a melhor versão deles
mesmos, nunca haviam jogado melhor.
Recentemente,
em entrevista ao excelente Maisfutebol, João de Deus mostrou que é, além de
tudo o mais, um interessantíssimo homem, o que contribuirá decisivamente para a
sua qualidade enquanto míster do pontapé na bola, assim chamado por Valdano. A
dada altura, afirma: Um dos grandes problemas é que eu pensava muito pouco o
jogo. Diziam-me corre para ali, ou chuta para ali e eu fazia o que me mandavam. Correndo o perigo da generalização,
parece-me que João de Deus encontra companhia em todos aqueles que aprenderam a
jogar por meio da repetição exaustiva de gestos e respeito incondicional pelas
ordens que chegavam da linha lateral.
E esta
é, na verdade, uma das maiores e mais tristes evidências acerca do treino
desportivo em qualquer modalidade. Recordo inúmeros treinadores, alguns
marcantes, que procuraram melhorar a execução táctica e técnica – infelizmente
com preponderância desajustada para a primeira – de todos quantos integravam
aquelas desafiantes equipas, recorrendo à exemplificação e repetição da fórmula
para jogar. Esquecidas ficavam as ferramentas, na forma de domínio dos gestos
técnicos básicos do jogo, e a essencial consciência que garante a sua adequada
utilização, na forma de compreensão do jogo ao ponto de permitir que o jogador,
sozinho e rapidamente, consiga decidir qual o melhor gesto técnico ou decisão
táctica a empregar.
É
complicado convencer um treinador de miúdos de 14 anos a ensiná-los a passar
bem para os dois lados, a saber cair com a bola, a chutá-la, a tocar nela 100
vezes por treino, a perceber que não é igual jogar contra defesas alinhados ou
profundos, a identificar vantagens e o espaço, a saber não obliterá-lo, antes
entregando a bola para companheiros melhor colocados, a seguir
incondicionalmente o portador do melão e a disponibilizar-se para que ela se mantenha
“viva”. É complicado, porque preferem todos, incluindo os miúdos, ganhar.
Ensinar exige tempo, ao passo que a vitória no fim-de-semana seguinte pede
apenas que alinhemos os miúdos e os metamos a repetir ad nauseam a jogada que nos dará a vitória. Com sorte, podemos
repeti-la 3 vezes, para 3 ensaios.
É
também por isto que, chegados aos séniores, os nossos treinadores recebiam uma
mão cheia de malta que não percebia patavina do que andava a jogar. E assim
continuámos, até que tentámos ensinar aos miúdos a arte de jogar Rugby. Ninguém
esquece o dia em que é confrontado com a sua ignorância.
Vem
tudo isto a propósito de treinadores e do que fazem: treinar, ou seja, tornar o
atleta apto a desempenhar determinada atividade desportiva. Um atleta será tão
mais apto quanto melhor seja capaz de dominar os gestos técnicos e compreender os
fundamentos do jogo.
É comum
ouvir os treinadores das equipas mais aflitas lamentarem-se da falta de
qualidade do seu plantel. E por isso, entre jogos de 10 contra 10, uns berros a
apelar à alma e umas “sovas” físicas, limitam-se a aceitar o que os seus
jogadores podem dar, sem acreditar que, aos 25 anos, um jogador pode aprender a
pensar melhor, a passar melhor, a chutar melhor, a compreender a colisão sob uma
outra luz... São os treinadores que, anatematicamente, demitiram-se de treinar,
limitando-se a selecionar nomes e olear a máquina.
É claro
que ao mais alto nível o imperativo da vitória comanda, e por vezes há que
aceitar a limitação evidente do conjunto, compondo uma fórmula de sucesso com
as qualidades existentes. Ainda recentemente Dean Ryan, um dos mais celebrados
e analíticos cérebros do rugby moderno, recordou-nos a cartilha, de onde lê igualmente
o bem sucedido Heineke Meyer.
E no
entanto, é o próprio Heineke Meyer, com fama de conservador, que nos relembra
que os jogadores, mesmo os internacionais, podem aprender coisas novas. O Duane
Vermeulen, o Bismark Du Plessis e o François Louw aprenderam novas abordagem ao
“ruck”, logrando atrasar a saída de bola adversária, acelerando a
disponibilização das suas próprias bolas. Willie Le Roux, o ponta ou defesa que
“enterrou” com os seus lapsos defensivos e jogo ao pé ineficiente o Championship dos Sul-Africanos no Ellis
Park, frente aos All Blacks, parece ter ouvido o treinador de jogo ao pé, Louis
Koen, para agora ter convencido Meyer das suas capacidades como defesa de nível
internacional. Bob Dwyer, o lendário treinador Australiano campeão do mundo em
1991, nota como Quade Cooper, ainda há meses dado como acabado, surge em
Novembro com uma nova noção táctica, variando a profundidade com que recebe a
bola consoante as questões que lhe são colocadas pela defesa. Ele, com dezenas
e dezenas de internacionalizações, terá aprendido algo novo.
Pelos
vistos, mesmo aqueles cujo pescoço depende de vitórias, acabam por perceber que
o rigor do plano táctico fica vazio perante a incapacidade para executar, para
ler o jogo e jogar de acordo com que temos à frente dos nossos olhos.